Maria
do Carmo Brant de Carvalho
A
família é o primeiro sujeito que referencia e totaliza a proteção e a
socialização dos indivíduos. Independente das múltiplas formas e desenhos que a
família contemporânea apresente, ela se constitui num canal de iniciação e
aprendizado dos afetos e das relações sociais.
Para
abordar o tema, foi escolhido um caminho reflexivo que retorna as
características que formatam a política social no Brasil, seguido de um olhar
sobre o cotidiano das famílias brasileiras que vivem sob o signo de pobreza.
Por fim, de forma didática, discorre-se sobre as atenções básicas que uma
política social voltada à família deve contemplar.
Retomar
a família como unidade de atenção das políticas públicas não é um retrocesso a
velhos esquemas. É, sim, um desafio na busca de opções mais coletivas e
eficazes na proteção dos indivíduos de uma nação.
Uma breve contextualização da política
social no Brasil
A
política social no Brasil não tem logrado alterar o quadro de pobreza e
exclusão de parcela significativa da população brasileira. Ao contrário,
observa-se a cada década a ampliação das taxas de desigualdade social, ao mesmo
tempo em que a concentração de renda atinge índices insuportáveis.
A
Campanha Nacional de Combate à Fome e à Miséria que marcou o ano de 1993 ainda
não conseguiu reverter a direção da política social brasileira. Embora as
questões da vida e da cidadania estivessem presentes nos discursos, a
mobilização alcançada resultou numa atuação centrada na distribuição de cestas
alimentares. Reproduziu a cultura tradicional de enfrentamento da pobreza pela
via assistencialista e tutelar.
O
modus operandi arraigado nas diversas
faces da política social brasileira resistiu às pautas mais ambiciosas
presentes na campanha, apesar da aglutinação de esforços significativos e
diversificados que ela capitalizou.
O
reconhecimento e a garantia de direitos sociais acabou enviezando o olhar para
o contexto do fetiche capitalista da mercadoria. Passou-se a fragmentar os
indivíduos na forma de atenção pública.
Neste
modelo três processos ganharam força:
·
os
direitos do individuo de “per si” (criança, mulher, negro, idoso...);
·
a
fragmentação dos indivíduos em necessidades transformadas em direitos de “per
si” : direito a saúde, educação, transporte...;
·
a
psicologização das relações sociais.
Nos
demais processos destacaram-se como base de luta os direitos sociais e, como
protagonistas, os movimentos sociais e as organizações sindicais. O trabalho com famílias foi considerado na
maioria das vezes como uma prática conservadora e disciplinadora sob o rótulo
do planejamento familiar. A atenção à família se tornou periférica. Quanto
existente, não era ela o alvo, mas sim a mulher, o trabalhador, a criança.
Neste
caldo, o terceiro processo mencionado se introduziu carregado de magia: a psicologização
das relações sócias. Os indivíduos e micro-coletivos, como a família,
fragmentados num somatório de necessidades, ganhavam a identidade na carência
–de bens e serviços e de afetos.
Finalmente,
a política social no Brasil guarda ainda o ranço de um externo centralismo.
Embora exaltem-se as vantagens da descentralização e da municipalização das
atenções básicas ofertadas por essa política, ela não vem ocorrendo no ritmo
esperado. As estruturas do Estado mostram-se resistentes a adotar o novo reordenamento
político institucional que contempla uma partilha efetiva de competências e
atribuições entre as três esferas de governo (municipal, estadual e federal).
A
crise do “Welfare State”, o déficit público, o individualismo crescente, a
institucionalização das necessidades individuais/grupais e o desempenho
estrutural introduzem hoje velhos e novos desafios à politica social brasileira
e mundial.
Neste
contexto, ressurge a família e a comunidade. Primeiro, a família como unidade
econômica e direito da criança. Segundo, a comunidade como necessidade de o
Estado Nacional com ela partilhar as responsabilidades e os custos das
políticas públicas de proteção e reprodução social de seus cidadãos. Este
ressurgimento reflete ainda uma certa consciência do esgotamento da opção –
quase única – pelo indivíduo, centro da atenção pública. Não é por acaso que em
1994 viveremos o Ano Internacional da Família e possivelmente um outro ano será
ancorado na ideia da “comunidade”.
A sobrevivência cotidiana das famílias
empobrecidas
Vive-se
no Brasil um verdadeiro “apartheid” entre ricos e pobres. Não se percebe, mas
este “apartheid” é notório, especialmente nas regiões metropolitanas, onde a
maioria da população vive confinada em cortiços, favelas e casas precárias das
periferias, excluídos não apenas do acesso a bens e serviços, mas também do
usufruto da própria cidade. A pequena população rica vive em bairros que são
verdadeiros condomínios fechados com todos os bens e serviços disponíveis.
A
solidariedade conterrânea e parental
é condição primeira para a sobrevivência e a existência de famílias em situação
de pobreza e discriminação. Pode-se dizer que vivem em comunidades cuja
identidade é marcada pela carência, sangue e terra natal.
A
solidariedade parental e conterrânea
e expressa cotidianamente através dos empréstimos para pagar uma prestação, uma
conta de luz ou água, para o táxi (por alguém da família que ficou doente e
precisa ir ao hospital...); alguém que tome conta das crianças em uma
emergência. Estas são situações a que todos estão sujeitos e a única forma de
enfrenta-las é com a solidariedade.
O
grupo familiar extenso, o agregado de parentes e conterrâneos, ou a pequena
comunidade rural cria vínculos e sistemas próprios que garantem os padrões de
reprodução social.
A
vida do grupo familiar maximiza as chances de garantir a sobrevivência do
membros que têm pequenos rendimentos, mesmo que no conjunto a renda “per
capita” tenha seu valor rebaixado.
Mas
a família de baixa renda também assimila, nas megacidades brasileiras, novos
valores e padrões de reprodução social: gerar menos filhos; a mulher como força
de trabalho; a diferenciação entre chefe e provedor.
Na
sobrevivência cotidiana destas famílias observa-se outros fator importante: uma
dependência estratégica da chamada solidariedade
apadrinhada.
Observa-se
aqui um processo de usufruto de bens de consumo de “segunda ou terceira mão”: a
patroa que substitui a geladeira doando à sua empregada a anterior; já tendo
uma geladeira, substitui-a pela recém-ganha, transferindo a velha para um
parente que não a tem. De fato, roupas, utensílios, eletrodomésticos ou mesmo
ajuda financeira para a compra de um lote ou cesta de materiais de construção
advêm muitas vezes desta sociedade-providência fluida, mas presente na agenda
das estratégias de reprodução da família.
Isto
explica um modo de reciclagem dos bens de consumo. Demonstra igualmente que a
cultura do apadrinhamento perpetua no cenário da modernidade brasileira. As
classes média e alta parecem preferir ajudar apadrinhados concretos que
financiar serviços social públicos.
A
solidariedade missionária é um
terceiro componente nesta difícil e precária sobrevivência das famílias
empobrecidas.
A
Igreja Católica, Protestante, Espirita ou seitas afro-brasileiras compõem o
projeto de reprodução social das famílias empobrecidas. A Igreja é sempre uma
porta que acalenta a esperança. Através de seus programas pastorais representa
um suporte espiritual, mas especialmente um suporte emocional, afetivo e
material. É a escola para aprender a viver na cidade, um canal de organização
para a conquista de serviços públicos, um canal de convivência a partir do
culto; um espaço de lazer, de cura dos doentes e de uma assistência social que,
embora muitas vezes paliativa, é próxima e mais acessível.
A
Igreja se faz presente no cotidiano da vida das famílias e comunidades. É a
instituição com maior credibilidade para está população. É através dele que
fluía sociedade-providência organizada,
que cria serviços assistenciais e de defesa para a imensa demanda de justiça
que esta população expressa. É também contraditoriamente, muitas vezes, o
amortecedor da revolta e indignação com a injustiça. Por isso, em muitos casos,
as obras da igreja criam uma cumplicidade com a pobreza, reproduzindo o
“apartheid” social que se assiste.
Mas,
sem dúvida, é a ação de algumas igrejas que estabelece princípios facilitadores
de valorização de um trabalho coletivo como condição de mudança.
São,
na maioria das vezes, as instituições religiosas, mais do que os partidos políticos
ou os agentes públicos, que formam as bases para o salto organizativo da
população, expresso nos movimentos de luta por moradia, saúde, saneamento,
transporte etc.
É
neste processo que nascem projetos coletivos para satisfação de necessidades
comuns.
Estas
solidariedades e processos são vividos, no entanto, com contradições e
conflitos próprios ao confinamento a que estão submetidos.
Os
barracos de favela, os cômodos de cortiços, os bairros periféricos que não
garantem privacidade, acabam por esgarçar os vínculos maiores da família
nuclear.
O
direito à privacidade não é sequer sonhados pelos grupos familiares
empobrecidos. Este quadro se completa pela ausência de usufruto de bens e
serviços mínimos à sobrevivência material (saneamento básico, coleta de lixo,
transporte, trabalho...)
Outro
elemento esgarçador das relações é a paisagem/condições de confinamento
homogêneo da pobreza – amontoado de barracos e de habitações do tipo Pró-Morar
(BNH), paisagem típica do “apartheid”. É a igualdade homogeneizada na miséria.
Todos que ali convivem têm um mesmo signo: salários baixos, exclusão,
discriminação.
Há
que se destacar também a exclusão persistente de bens culturais neste cenário
de “apartheid” social. Com a ausência de trocas culturais e sem acesso a
serviços de educação, lazer e cultura, as famílias possuem poucas ferramentas
para romper com sua identidade de excluídos.
Diante
desta clara exclusão e de uma sobrevivência marcada pela submissão ao
“apartheid” social, algumas constatações ficam claras.
Forjada
na cultura da subalternidade, a submissão dos indivíduos se transforma em sina.
Com ela convivem numa alienação consentida. O uso da bebida alcoólica pelos
adultos ou a cola de sapateiro por crianças/adolescentes parece ser um vício
compulsório à vida desta população, seja porque já enganou ou engana a fome,
seja porque, na exclusão e na discriminação a que estão submetidos, só lhes
resta alienar-se cada vez mais.
A
ausência de privacidade, ou melhor, a co-habitação com a promiscuidade nos 365
dias do ano, ano após ano.
As
condições do cotidiano familiar aqui descritas querem fundamentar um novo olhar
sobre os chamados maus-tratos provocados pelas famílias em suas crianças. Em
geral, enfatizam-se os altos índices de maus-tratos produzidos pela família,
culpando –as “tout-court”. Não se aprofunda sobre esta paisagem de violência e
maus-tratos sofridos cotidianamente pela própria família.
A família brasileira na agenda da
politica social
Sem
dúvida, é preciso constatar que a família tem sido uma ilustre desconhecida nas
diretrizes e programas propostos pela política social brasileira.
Em
realidade, as atenções hoje prestadas à família são extremamente conservadoras,
inercias e só justificáveis no contexto da cultura tutelar dominante. Exemplo diste
é a enorme resistência a programas de complementação de renda familiar já
existentes como prática social há dezenas de anos em vários países do mundo.
Prefere-se ainda a distribuição de ajudas em espécie do tipo cesta alimentar,
enxovais de bebê, cesta de medicamentos etc.
Outro
exemplo é a nítida preferência por abrigar em “orfanatos” e casas-abrigo
crianças abandonadas ou em risco de abandono.
Programas
de guarda de crianças em famílias substitutas na própria comunidade são opções
correntes em vários países. Este tipo de guarda, opção mais recomendável para a
criança e menos onerosa para o Estado, não ocorre por resistência ao usual
subsídio financeiro destinado diretamente e supervisionado tecnicamente, como
ocorre em programas desta natureza em outros países.
Esquece-se
que o Estado tem um papel normatizador, de assessoria e de controle. Não se
raciocina em termos de custo/benefício e da busca de resultados mais eficazes.
Neste caso em particular, uma criança em abrigo custa geralmente mais de dois salários
mínimos por mês e seu uso generalizado fere princípios básicos estabelecidos em
Estatuto da Criança e do Adolescente, referentes ao direito da criança à
convivência familiar e comunitária.
Estes
exemplos querem apenas instigar a reflexão sobre a atenção às famílias no
Brasil.
De
fato, os abandonados maiores são hoje as próprias famílias e não suas
resultantes: crianças precocemente internadas em abrigos, meninos/as de rua...
Macro-políticas que pressupõe a
introdução da família na agenda da política social
Sem
dúvida, o Estado brasileiro precisa investir com urgência numa politica social
de qualidade com objetivos de erradicação da miséria. A descentralização e a
municipalização também são condições fundamentais.
As
desigualdades sociais e é preciso uma radical redistribuição de renda. O
salário mínimo atual de 60 dólares mensais é um reforço à miséria, à exclusão e
ao “apartheid” social.
Políticas
de geração massiva de empregos, assentamentos de famílias no campo, saneamento
básico, programas de segurança alimentar devem ser a base primeira da atenção
às famílias brasileiras.
Micro-políticas de âmbito municipal na
atenção à família
No
âmbito da sobrevivência e da existência cotidiana familiar e comunitária,
algumas ações precisam, além de compensar, alterar esse mesmo cotidiano.
É
preciso retomar as unidades família e comunidade como ponto de partida e
práticas sociais alterativas e não simplesmente alternativas.
Isto
significa que a família, tal qual a comunidade, precisa de apoios direcionados
ao maior e melhor usufruto de bens e serviços indispensáveis à alteração da
qualidade de vida e exclusão a que estão submetidas.
A
saúde e a educação são serviços estratégicos e essenciais. Porém não bastam
consultas médicas garantidas e a matricula da criança na escola.
O
sucesso da atenção à saúde e à educação depende da conjugação de ações e apoios
advindos das demais políticas e sobretudo de uma rede de apoio e envolvimento
das famílias e comunidades no usufruto eficaz destas atenções básicas.
Uma
pauta concreta de atenção mínima às famílias
A
priorização da família na agenda da politica social envolve necessariamente
programas de geração de emprego e renda; rede de serviços comunitários de apoio
psico-social e cultural; complementação da renda familiar.
As
ações hoje são assistencialistas e tutelares, o que precisa ser erradicado em
um projeto político de compromisso ético para as famílias brasileiras.
1)
Programas
de geração de emprego e renda
Destinados
a famílias empobrecidas
2)
Rede
de serviços comunitários de apoio psicossocial e cultura a famílias
Alguns
programas/serviços se destacam nesta forma intersetorial e interdisciplinar
aqui enfatizados:
·
Programas
de atenção à gestantes e nutrizes.
·
Serviços
especializados de apoio psicossocial;
·
Programas
de socialização e lazer;
·
Acesso
á cultura.
3)
Complementação
da renda familiar
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