segunda-feira, 4 de abril de 2016

A PRIORIZAÇÃO DA FAMÍLIA NA AGENDA DA POLÍTICA SOCIAL

Maria do Carmo Brant de Carvalho

A família é o primeiro sujeito que referencia e totaliza a proteção e a socialização dos indivíduos. Independente das múltiplas formas e desenhos que a família contemporânea apresente, ela se constitui num canal de iniciação e aprendizado dos afetos e das relações sociais.
Para abordar o tema, foi escolhido um caminho reflexivo que retorna as características que formatam a política social no Brasil, seguido de um olhar sobre o cotidiano das famílias brasileiras que vivem sob o signo de pobreza. Por fim, de forma didática, discorre-se sobre as atenções básicas que uma política social voltada à família deve contemplar.
Retomar a família como unidade de atenção das políticas públicas não é um retrocesso a velhos esquemas. É, sim, um desafio na busca de opções mais coletivas e eficazes na proteção dos indivíduos de uma nação.


Uma breve contextualização da política social no Brasil

A política social no Brasil não tem logrado alterar o quadro de pobreza e exclusão de parcela significativa da população brasileira. Ao contrário, observa-se a cada década a ampliação das taxas de desigualdade social, ao mesmo tempo em que a concentração de renda atinge índices insuportáveis.
A Campanha Nacional de Combate à Fome e à Miséria que marcou o ano de 1993 ainda não conseguiu reverter a direção da política social brasileira. Embora as questões da vida e da cidadania estivessem presentes nos discursos, a mobilização alcançada resultou numa atuação centrada na distribuição de cestas alimentares. Reproduziu a cultura tradicional de enfrentamento da pobreza pela via assistencialista e tutelar.
O modus operandi arraigado nas diversas faces da política social brasileira resistiu às pautas mais ambiciosas presentes na campanha, apesar da aglutinação de esforços significativos e diversificados que ela capitalizou.
O reconhecimento e a garantia de direitos sociais acabou enviezando o olhar para o contexto do fetiche capitalista da mercadoria. Passou-se a fragmentar os indivíduos na forma de atenção pública.

Neste modelo três processos ganharam força:
·         os direitos do individuo de “per si” (criança, mulher, negro, idoso...);
·         a fragmentação dos indivíduos em necessidades transformadas em direitos de “per si” : direito a saúde, educação, transporte...;
·         a psicologização  das relações sociais.

Nos demais processos destacaram-se como base de luta os direitos sociais e, como protagonistas, os movimentos sociais e as organizações sindicais. O  trabalho com famílias foi considerado na maioria das vezes como uma prática conservadora e disciplinadora sob o rótulo do planejamento familiar. A atenção à família se tornou periférica. Quanto existente, não era ela o alvo, mas sim a mulher, o trabalhador, a criança.
Neste caldo, o terceiro processo mencionado se introduziu carregado de magia: a psicologização das relações sócias. Os indivíduos e micro-coletivos, como a família, fragmentados num somatório de necessidades, ganhavam a identidade na carência –de bens e serviços e de afetos.
Finalmente, a política social no Brasil guarda ainda o ranço de um externo centralismo. Embora exaltem-se as vantagens da descentralização e da municipalização das atenções básicas ofertadas por essa política, ela não vem ocorrendo no ritmo esperado. As estruturas do Estado mostram-se resistentes a adotar o novo reordenamento político institucional que contempla uma partilha efetiva de competências e atribuições entre as três esferas de governo (municipal, estadual e federal).
A crise do “Welfare State”, o déficit público, o individualismo crescente, a institucionalização das necessidades individuais/grupais e o desempenho estrutural introduzem hoje velhos e novos desafios à politica social brasileira e mundial.
Neste contexto, ressurge a família e a comunidade. Primeiro, a família como unidade econômica e direito da criança. Segundo, a comunidade como necessidade de o Estado Nacional com ela partilhar as responsabilidades e os custos das políticas públicas de proteção e reprodução social de seus cidadãos. Este ressurgimento reflete ainda uma certa consciência do esgotamento da opção – quase única – pelo indivíduo, centro da atenção pública. Não é por acaso que em 1994 viveremos o Ano Internacional da Família e possivelmente um outro ano será ancorado na ideia da “comunidade”.


A sobrevivência cotidiana das famílias empobrecidas

Vive-se no Brasil um verdadeiro “apartheid” entre ricos e pobres. Não se percebe, mas este “apartheid” é notório, especialmente nas regiões metropolitanas, onde a maioria da população vive confinada em cortiços, favelas e casas precárias das periferias, excluídos não apenas do acesso a bens e serviços, mas também do usufruto da própria cidade. A pequena população rica vive em bairros que são verdadeiros condomínios fechados com todos os bens e serviços disponíveis.
A solidariedade conterrânea e parental é condição primeira para a sobrevivência e a existência de famílias em situação de pobreza e discriminação. Pode-se dizer que vivem em comunidades cuja identidade é marcada pela carência, sangue e terra natal.
A solidariedade parental e conterrânea e expressa cotidianamente através dos empréstimos para pagar uma prestação, uma conta de luz ou água, para o táxi (por alguém da família que ficou doente e precisa ir ao hospital...); alguém que tome conta das crianças em uma emergência. Estas são situações a que todos estão sujeitos e a única forma de enfrenta-las é com a solidariedade.
O grupo familiar extenso, o agregado de parentes e conterrâneos, ou a pequena comunidade rural cria vínculos e sistemas próprios que garantem os padrões de reprodução social.
A vida do grupo familiar maximiza as chances de garantir a sobrevivência do membros que têm pequenos rendimentos, mesmo que no conjunto a renda “per capita” tenha seu valor rebaixado.
Mas a família de baixa renda também assimila, nas megacidades brasileiras, novos valores e padrões de reprodução social: gerar menos filhos; a mulher como força de trabalho; a diferenciação entre chefe e provedor.
Na sobrevivência cotidiana destas famílias observa-se outros fator importante: uma dependência estratégica da chamada solidariedade apadrinhada.
Observa-se aqui um processo de usufruto de bens de consumo de “segunda ou terceira mão”: a patroa que substitui a geladeira doando à sua empregada a anterior; já tendo uma geladeira, substitui-a pela recém-ganha, transferindo a velha para um parente que não a tem. De fato, roupas, utensílios, eletrodomésticos ou mesmo ajuda financeira para a compra de um lote ou cesta de materiais de construção advêm muitas vezes desta sociedade-providência fluida, mas presente na agenda das estratégias de reprodução da família.
Isto explica um modo de reciclagem dos bens de consumo. Demonstra igualmente que a cultura do apadrinhamento perpetua no cenário da modernidade brasileira. As classes média e alta parecem preferir ajudar apadrinhados concretos que financiar serviços social públicos.
A solidariedade missionária é um terceiro componente nesta difícil e precária sobrevivência das famílias empobrecidas.
A Igreja Católica, Protestante, Espirita ou seitas afro-brasileiras compõem o projeto de reprodução social das famílias empobrecidas. A Igreja é sempre uma porta que acalenta a esperança. Através de seus programas pastorais representa um suporte espiritual, mas especialmente um suporte emocional, afetivo e material. É a escola para aprender a viver na cidade, um canal de organização para a conquista de serviços públicos, um canal de convivência a partir do culto; um espaço de lazer, de cura dos doentes e de uma assistência social que, embora muitas vezes paliativa, é próxima e mais acessível.
A Igreja se faz presente no cotidiano da vida das famílias e comunidades. É a instituição com maior credibilidade para está população. É através dele que fluía sociedade-providência organizada, que cria serviços assistenciais e de defesa para a imensa demanda de justiça que esta população expressa. É também contraditoriamente, muitas vezes, o amortecedor da revolta e indignação com a injustiça. Por isso, em muitos casos, as obras da igreja criam uma cumplicidade com a pobreza, reproduzindo o “apartheid” social que se assiste.
Mas, sem dúvida, é a ação de algumas igrejas que estabelece princípios facilitadores de valorização de um trabalho coletivo como condição de mudança.
São, na maioria das vezes, as instituições religiosas, mais do que os partidos políticos ou os agentes públicos, que formam as bases para o salto organizativo da população, expresso nos movimentos de luta por moradia, saúde, saneamento, transporte etc.
É neste processo que nascem projetos coletivos para satisfação de necessidades comuns.
Estas solidariedades e processos são vividos, no entanto, com contradições e conflitos próprios ao confinamento a que estão submetidos.
Os barracos de favela, os cômodos de cortiços, os bairros periféricos que não garantem privacidade, acabam por esgarçar os vínculos maiores da família nuclear.
O direito à privacidade não é sequer sonhados pelos grupos familiares empobrecidos. Este quadro se completa pela ausência de usufruto de bens e serviços mínimos à sobrevivência material (saneamento básico, coleta de lixo, transporte, trabalho...)
Outro elemento esgarçador das relações é a paisagem/condições de confinamento homogêneo da pobreza – amontoado de barracos e de habitações do tipo Pró-Morar (BNH), paisagem típica do “apartheid”. É a igualdade homogeneizada na miséria. Todos que ali convivem têm um mesmo signo: salários baixos, exclusão, discriminação.
Há que se destacar também a exclusão persistente de bens culturais neste cenário de “apartheid” social. Com a ausência de trocas culturais e sem acesso a serviços de educação, lazer e cultura, as famílias possuem poucas ferramentas para romper com sua identidade de excluídos.
Diante desta clara exclusão e de uma sobrevivência marcada pela submissão ao “apartheid” social, algumas constatações ficam claras.
Forjada na cultura da subalternidade, a submissão dos indivíduos se transforma em sina. Com ela convivem numa alienação consentida. O uso da bebida alcoólica pelos adultos ou a cola de sapateiro por crianças/adolescentes parece ser um vício compulsório à vida desta população, seja porque já enganou ou engana a fome, seja porque, na exclusão e na discriminação a que estão submetidos, só lhes resta alienar-se cada vez mais.
A ausência de privacidade, ou melhor, a co-habitação com a promiscuidade nos 365 dias do ano, ano após ano.
As condições do cotidiano familiar aqui descritas querem fundamentar um novo olhar sobre os chamados maus-tratos provocados pelas famílias em suas crianças. Em geral, enfatizam-se os altos índices de maus-tratos produzidos pela família, culpando –as “tout-court”. Não se aprofunda sobre esta paisagem de violência e maus-tratos sofridos cotidianamente pela própria família.

A família brasileira na agenda da politica social
Sem dúvida, é preciso constatar que a família tem sido uma ilustre desconhecida nas diretrizes e programas propostos pela política social brasileira.
Em realidade, as atenções hoje prestadas à família são extremamente conservadoras, inercias e só justificáveis no contexto da cultura tutelar dominante. Exemplo diste é a enorme resistência a programas de complementação de renda familiar já existentes como prática social há dezenas de anos em vários países do mundo. Prefere-se ainda a distribuição de ajudas em espécie do tipo cesta alimentar, enxovais de bebê, cesta de medicamentos etc.
Outro exemplo é a nítida preferência por abrigar em “orfanatos” e casas-abrigo crianças abandonadas ou em risco de abandono.
Programas de guarda de crianças em famílias substitutas na própria comunidade são opções correntes em vários países. Este tipo de guarda, opção mais recomendável para a criança e menos onerosa para o Estado, não ocorre por resistência ao usual subsídio financeiro destinado diretamente e supervisionado tecnicamente, como ocorre em programas desta natureza em outros países.
Esquece-se que o Estado tem um papel normatizador, de assessoria e de controle. Não se raciocina em termos de custo/benefício e da busca de resultados mais eficazes. Neste caso em particular, uma criança em abrigo custa geralmente mais de dois salários mínimos por mês e seu uso generalizado fere princípios básicos estabelecidos em Estatuto da Criança e do Adolescente, referentes ao direito da criança à convivência familiar e comunitária.
Estes exemplos querem apenas instigar a reflexão sobre a atenção às famílias no Brasil.
De fato, os abandonados maiores são hoje as próprias famílias e não suas resultantes: crianças precocemente internadas em abrigos, meninos/as de rua...

Macro-políticas que pressupõe a introdução da família na agenda da política social
Sem dúvida, o Estado brasileiro precisa investir com urgência numa politica social de qualidade com objetivos de erradicação da miséria. A descentralização e a municipalização também são condições fundamentais.
As desigualdades sociais e é preciso uma radical redistribuição de renda. O salário mínimo atual de 60 dólares mensais é um reforço à miséria, à exclusão e ao “apartheid” social.
Políticas de geração massiva de empregos, assentamentos de famílias no campo, saneamento básico, programas de segurança alimentar devem ser a base primeira da atenção às famílias brasileiras.

Micro-políticas de âmbito municipal na atenção à família
No âmbito da sobrevivência e da existência cotidiana familiar e comunitária, algumas ações precisam, além de compensar, alterar esse mesmo cotidiano.
É preciso retomar as unidades família e comunidade como ponto de partida e práticas sociais alterativas e não simplesmente alternativas.
Isto significa que a família, tal qual a comunidade, precisa de apoios direcionados ao maior e melhor usufruto de bens e serviços indispensáveis à alteração da qualidade de vida e exclusão a que estão submetidas.
A saúde e a educação são serviços estratégicos e essenciais. Porém não bastam consultas médicas garantidas e a matricula da criança na escola.
O sucesso da atenção à saúde e à educação depende da conjugação de ações e apoios advindos das demais políticas e sobretudo de uma rede de apoio e envolvimento das famílias e comunidades no usufruto eficaz destas atenções básicas.

Uma pauta concreta de atenção mínima às famílias
A priorização da família na agenda da politica social envolve necessariamente programas de geração de emprego e renda; rede de serviços comunitários de apoio psico-social e cultural; complementação da renda familiar.
As ações hoje são assistencialistas e tutelares, o que precisa ser erradicado em um projeto político de compromisso ético para as famílias brasileiras.

1)    Programas de geração de emprego e renda
Destinados a famílias empobrecidas

2)    Rede de serviços comunitários de apoio psicossocial e cultura a famílias
Alguns programas/serviços se destacam nesta forma intersetorial e interdisciplinar aqui enfatizados:
·         Programas de atenção à gestantes e nutrizes.
·         Serviços especializados de apoio psicossocial;
·         Programas de socialização e lazer;
·         Acesso á cultura.


3)    Complementação da renda familiar

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